Arlindo dos 8 Baixos e Selma do Coco queriam preservar ritmos do estado.
Casa de Abelardo da Hora deve virar museu, segundo sonhos dos filhos.
Nos últimos anos, Pernambuco perdeu grandes ícones de sua cultura. Ariano Suassuna, Abelardo da Hora, Reginaldo Rossi, Selma do Coco, Dominguinhos, Arlindo dos Oito Baixos, Mestre Camarão. Nomes que consolidaram o estado como polo musical e artístico no cenário nacional e que fizeram de suas vidas patrimônio de uma época e de um povo. Após a morte, o que deveria ser permanente – a memória – acaba se enfraquecendo diante da falta de apoio e da presença de espaços e símbolos que honrem o legado que cada um deixou, depois de décadas de produção cultural.
Escutar a música e as histórias de Selma do Coco, contemplar as esculturas de Abelardo da Hora ou dançar um forró dominical aos moldes do que Arlindo dos Oito Baixos fazia. São ideias que familiares e produtores dos artistas tentam manter acesas, mesmo diante de um cenário não muito animador de crise e de pouco investimento no âmbito cultural. Em comum, os três projetos visam a valorização e perpetuação do legado desses artistas pernambucanos que morreram recentemente. Em diferentes estágios para se tornarem concretas, as propostas seguem no papel, mas se mostram essenciais para que a história não se perca na desinformação.
Família de Abelardo quer casa-museu
Foi em 2006 que um dos maiores artistas plásticos do Brasil, Abelardo da Hora, adquiriu um terreno ao lado de sua casa, no bairro da Boa Vista, no Recife, para construir a sede do instituto que leva seu nome. A ideia era fazer uma construção arrojada, para abrigar salas dedicadas a diversos tipos de arte, além de expor permanentemente peças do seu acervo.
Hoje, o local entre as ruas do Sossego e Cardoso Ayres ainda é um grande vazio. Tem apenas duas cobertas e guarda algumas das obras de Abelardo. Em setembro de 2014, o então governador de Pernambuco, João Lyra Neto, compareceu ao velório do artista e prometeu ajudar no que fosse possível para consolidar o Instituto Abelardo da Hora. Quase um ano se passou e, frente à desesperança quanto ao apoio institucional, a família decidiu vender a área e se dedicar à casa onde Abelardo morava.
A ideia é fazer uma casa-museu, com pé-direito alto e onde os visitantes possam ver algumas obras originais, além de conferir o local em que o artista trabalhava e descansava. Lá, estão peças de temática social, como “Flagelo”, “Sem Terra e Sem Vez”, “A Fome e o Brado”, sem falar nas tradicionais esculturas de mulheres em poses sensuais. “Nos sete meses que se passaram, o entendimento da família foi em manter essas obras todas juntas, e não dividir para os filhos. A gente entende que arte de Abelardo é do Recife, de Pernambuco e do Brasil, não de uma família”, destacou Abelardo da Hora Filho.
Ao todo, no local há cerca de 1,5 mil obras, entre esculturas e desenhos. E novos trabalhos de Abelardo ainda aparecem, a cada procura pelos antigos móveis. Recentemente, o filho achou, nas gavetas do pai, 80 desenhos inéditos, todos sobre terreiros de umbanda e orixás. Nos corredores estão esculturas de todos os tipos, e casa está intocada, do jeito que o mestre deixou.
O Instituto Abelardo da Hora, além de querer construir o museu, mantém atividades para a preservação da memória. No Recife, por exemplo, existem cerca de 600 obras de Abelardo espalhadas pela cidade, em espaços públicos e privados. Algumas dessas obras, através de uma manutenção malfeita, perdem as características originais. Antes de morrer, o artista ainda deixou alguns projetos em andamento, que devem ser levados adiante pela família, como a Torre Cinética na Praça da Torre, monumento derrubado na ditadura militar; o busto de Gregório Bezerra; e uma obra no Hospital da Mulher da Prefeitura do Recife.
“Impressionante como a memoria do povo é curta, por isso a gente realmente tem que lutar pela preservação da memória da grande figura que foi meu pai. Mas não há nenhum diálogo entre nós e poder público, até porque não há recursos para nada. Quando a gente tiver uma brecha, vamos buscar”, comentou Abelardo da Hora filho. Para agosto, está prevista uma exposição inédita do artista na Caixa Cultural do Recife, em celebração aos 90 anos de nascimento.
A casa de Abelardo da Hora segue aberta para visitação, mas de forma agendada. Os interessados devem entrar em contato através do número 3221-0773.
Casa arrumada, mas sem Forró do Arlindo
Todos os dias, a viúva de Arlindo dos Oito Baixos, dona Odete Macedo, arruma o espaço destinado ao forró que o marido construiu nos fundos de sua casa, em Dois Unidos, Zona Norte do Recife. O espaço ganhou até uma placa nova, segundo dona Odete há cerca de dois meses, identificando como ponto de difusão da cultura nordestina. Só que, sem dinheiro e sem nenhum tipo de apoio, dona Odete e o produtor de Arlindo, Roberto Andrade, pararam as atividades do espaço no último mês de março.
O Forró do Arlindo foi criado em 2000, como um encontro de amigos. Foi crescendo e virou um espaço de efervescência do forró na Zona Norte, reunindo nomes como Marinês, Santanna e Dominguinhos. O espaço também preservava a sanfona dos oito baixos, modelo diferenciado usado por poucos forrozeiros. Organizar a festa em que batia ponto todos os domingos era a coisa que mais dava prazer em Arlindo, até quando a saúde dele permitiu. O pernambucano morreu em setembro de 2013, após problemas decorrentes de diabetes.
O cenário hoje no Forró do Arlindo é um misto de organização e abandono. As mesas estão organizadas, as toalhas floridas fazem a decoração, e o chão é varrido constantemente. A estrutura, entretanto, padece. O maior problema é no telhado, que está solto em algumas partes, com goteiras e podendo causar até um acidente. “Eu venho aqui, arrumo, porque qualquer pessoa que pedir para ver como é o espaço, ele está todo ajeitadinho. Todo dia eu organizo, mas não posso mais me comprometer com as festas”, falou dona Odete.
A vontade de manter o forró existe, além de criar um espaço de preservação para a sanfona dos oito baixos, com oficinas regulares. O problema é que, ganhando apenas uma aposentadoria, Odete não pode garantir a festa. Precisa ter capital de giro para alugar som, pagar artistas, bancar os bares e as comidas. “Arlindo sempre queria manter a tradição que ele ajudou a propagar até quando pôde, dá uma tristeza ver isso aqui sem movimento”, destacou Roberto Andrade.
Produtor de Arlindo nos últimos 15 nos de vida do forrozeiro, Roberto tem a ideia de transformar o espaço em um polo junino, além de ter uma programação anual de festas e também oficinas de sanfoneiros. Ele prepara uma maratona de reuniões com os governos estadual e municipal para tentar viabilizar algum projeto. Pensa, inclusive, em criar tours dedicados ao forró no Recife, com visitação no espaço. Para este ano, pelo menos uma grande festa deve acontecer: o 15º aniversário do local, em setembro.
Desde que Arlindo morreu, dona Odete não foi procurada oficialmente por nenhum representante do governo para conversar. A época de São João passou e, com ela, a tristeza de não conseguir fazer as festas no período mais querido pelos forrozeiros. “Recebi muitas ligações, as pessoas pedindo que eu organizasse, que é uma pena não ter mais. O povo lembra muito ainda dele, sempre me procuram, mas o espaço não estou conseguindo manter. Mas se Deus quiser isso aqui vai voltar a ser o que era”, disse a viúva. Em 2012, Arlindo dos 8 Baixos ganhou o titulo de Patrimônio Vivo de Pernambuco.
A Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Cultura, disse que, por se tratar de um espaço privado, a família precisa apresentar um projeto da Fundação de Cultura da cidade, com contrapartidas sociais, para receber apoio. Em relação à placa que dona Odete diz ter sido colocada este ano, a Secretaria de Turismo e Lazer informa que foi instalada no primeiro semestre de 2014, através de um projeto de sinalização turística.
Briga de família e os sonhos de Selma
Enquanto estava viva, até o último mês de maio, Selma do Coco dizia aos netos que sonhava em ter espaço dedicado ao coco em Olinda. Ela, que ajudou a difundir o ritmo pelo Brasil, queria perpetuá-lo mesmo depois que partisse. A cantora também se tornou Patrimônio Vivo do estado em 2012.
O problema da família de Selma do Coco está em torno da casa onde ela morava, no bairro do Amparo, em Olinda. A cantora viveu no local até seus últimos dias, com um dos seus netos, Alexandre. O G1 foi ao imóvel, que tem o nome “Espaço Cultural” no muro, mas o neto se limitou a dizer que não poderia conversar com a reportagem por orientação de advogados. Informou, entretanto, que gostaria de manter viva a memória de Selma.
Outro grupo de netos e parentes de Selma, por sua vez, já tem um projeto na cabeça. Querem um ponto de cultura destinado ao ritmo pernambucano. “Ela sempre manifestou interesse em fazer algo, mas, por questão de idade e alguns problemas, preferiu deixar quietinho. A ideia é difundir o coco de roda, até o Japão, mostrar quem era Selma através do resgate das cantigas antigas. A gente quer mostrar quem foi Selma: negra, pobre, vendedora de tapioca e cerveja para manter a sobrevivência”, disse Jaqueline Leite, nora de Selma do Coco
Viúva aos 33 anos, a cantora só teve três filhos, todos falecidos, mas criou diversos sobrinhos e netos. Trabalhou com música para manter todos. De acordo com os parentes, a partir de julho, eles vão tentar organizar o projeto para tentar verba junto aos governos estadual e federal. Ainda não há definição sobre a casa onde ela morava, pois a briga está na Justiça. “Ela engrandeceu não só a família, mas Pernambuco, levando o coco de roda para mundo”, finalizou Jaqueline.
Em nota, a Prefeitura de Olinda informou que, até o momento, não existe projeto para preservação da memória de Selma do Coco, mas que realiza seminários e encontros destinados ao coco na cidade.
Procurada pelo G1, a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) não deu retorno até a publicação desta reportagem.
Do: G1/PE.
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