Ricardo Fernandes/DP/D.A.Press
Centenas de anos na paisagem monotemática da cana-de-açúcar fizeram o homem da Mata Norte produzir uma diversidade de cores e ritmos, com grupos de maracatu de baque solto, cavalo-marinho, caboclinhos, ciranda. As dezenove cidades que fazem parte da região estão prestes a passar por mudanças profundas. Há uma fábrica da Fiat a caminho - com a promessa de empregar 4,5 mil trabalhadores -, uma fábrica de vidros - gerando mais 1,9 mil empregos - e a Hemobrás, que emprega cerca de mil trabalhadores em sua construção. Isso sem contar as várias outras empresas fornecedoras que devem se instalar na área por conta dessas indústrias. Ao que tudo indica, o futuro reserva uma completa mudança nos meios de produção ecônomica da região. O que as usinas “moeram” culturalmente nós já conhecemos, mas como a arte popular pode ser afetada pela mudança na economia?
Um dos receios de produtores e brincantes é de que com as mudanças, a longo prazo, as manifestações populares diminuam ou virem espetáculos folclóricos desenraizados de suas origens. A dinâmica da cultura poderia ter seu processo alterado pela rápida transformação econômica.
Com ampla vivência na Mata Norte, o músico Siba acredita que a força de vontade dos brincantes não vai deixar a cultura popular fenecer. “Ninguém é dono da cultura. Acabaram os engenhos, vieram as usinas (de cana-de-açúcar), as pessoas foram viver na cidade e o maracatu não morreu. O cavalo-marinho sofreu uma queda, mas ainda vive. Ter emprego nunca é ruim, só quem está de fora é que acha bonito passar fome”, diz. “Se houver uma troca das fábricas com a cultura daqui, ótimo. Mas o exemplo de outros lugares mostra que a tendência é de que as fábricas se instalem e esmaguem o resto”, continua.
O músico Cláudio da Rabeca, que desde 2004 se apresenta com o grupo de cavalo-marinho do mestre Biu Alexandre, em Condado, vê com cautela as mudanças. “Estilizar a cultura popular é perigoso. Mas é importante que as empresas que vão se instalar colaborem com os grupos e produtores”, diz. “Se os brincantes forem trabalhar nas fábricas, pode haver uma mudança prática. Hoje, as pessoas que trabalham na cana ficam meses sem emprego, o que não acontece na indústria”, diz. “A longo prazo vai haver mudanças, só não sei se para melhor ou para pior”, vaticina.
Desejo de voltar a cirandar
O pequeno vilarejo de Trigueiros, em Vicência, tem pouco menos de dois mil habitantes. Com poucas exceções, a população trabalha com a cana-de-açúcar de agosto a janeiro. O resto do ano sobrevive por conta das ações assistencialistas do governo, como o Bolsa Família. A diversão é pouca, quase inexistente. Não precisa de muita pesquisa para saber que a televisão é a grande fonte de entretenimento, com antenas parabólicas em quase todas as casas. Música só na Festa de Reis e no São João. Há cinco anos, Trigueiros ganhou o respaldo de ser uma comunidade remanescente de quilombolas e luta para recuperar também sua identidade cultural.
Atualmente, o único grupo atuante é o de capoeira, que reúne cerca de vinte jovens. As aulas começaram despretensiosamente na escola há três anos, mas, até dez dias atrás, nunca havia se apresentado com música ao vivo - o que aconteceu no Festival Nação Cultural, do governo do estado. As aulas de capoeira de Angola que tiveram com o mestre Sapo, de Olinda, deu novo ânimo para os jovens. “É como tentar reaver o que nossos antepassados faziam”, acredita Felipe Charles, 20, estudante do Projovem e trabalhador da cana. O presidente da associação de Trigueiros, João Milanez da Silva, acredita que, no futuro, as fábricas da região possam ajudar no desenvolvimento local. “Vamos tentar capacitações para que os moradores daqui trabalhem nas indústrias”, adianta.
Na comunidade ribeirinha da Povoação de São Lourenço, onde os moradores vivem da pesca, a luta é para não deixar a ciranda morrer. “A minha geração não chegou a viver a ciranda, o coco. Quem me ensinou foi a minha mãe, que foi ensinada pela mãe dela, mas ninguém mais brincava na rua. Agora é que estamos tentando resgatar as apresentações, ensinando as crianças”, conta Gedália Maria da Silva, a dona Dadá, que no ano passado montou um grupo de ciranda com cerca de vinte meninas. “Falta incentivo, mas estamos indo atrás. Acho que as fábricas que vão ser instaladas na região podem melhorar a qualidade de vida de todo mundo, e a cultura vai acabar sendo beneficiada”, diz.
Produtores articulados
Em termos de articulação, os produtores da Mata Norte já estão prontos para receber os investimentos futuros. A região é a segunda em número de projetos aprovados pelo Funcultura (o principal edital na área em Pernambuco), atrás somente da Região Metropolitana do Recife. Nos últimos três anos, a região formou cerca de 70 produtores culturais pelo Movimento Canavial, que reúne 130 pessoas da Mata Norte, o que gerou R$ 3 milhões. A Fiat é vista hoje como uma grande promessa para apoiar a cultura popular local.
Um projeto para o próximo São João, em Goiana, já foi produzido e será apresentado à empresa no final do mês. A ideia é que a Fiat libere recursos por meio da Lei Roaunet, que oferece incentivos fiscais para ações na área de cultura. “A Fiat é uma das maiores patrocinadoras do Brasil. É do histórico da empresa investir nas cidades em que tem fábricas instaladas”, diz, confiante, o produtor Afonso Oliveira, idealizador do Movimento Canavial. “A nossa vontade é trabalhar com as indústrias que vão ser implantadas aqui. Se a cultura local não estiver organizada, a cultura que vier vai se impor”.
O produtor cita o Litoral Sul, com as fábricas em Suape, como um exemplo a não ser seguido. “A cultura popular da região não entrou em sintonia com as indústrias. Empresários de Suape me disseram que nunca foram procurados por produtores locais. Os projetos culturais acabam indo para o Sul e o Sudeste”, diz. “O que a gente vê hoje, em Ipojuca, no Cabo de Santo Agostinho e em Ribeirão são shows de axé. Nada contra, mas a cultura popular é prejudicada”.
A mudança das usinas para as fábricas está sendo vista como uma boa oportunidade. “A maioria dos brincantes está, direta ou indiretamente, ligada às usinas, do plantio à moagem. Mas, apesar da pujança econômica, as usinas de açúcar apoiaram pouco a cultura popular, com poucas exceções”, encerra.
Fonte: Diario de Pernambuco.