Pesquisa da Fiocruz detecta caso grave da doença em Chã
Grande, Zona da Mata, e descobre crianças infectadas na
capital.
Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
Aos 75 anos, o agricultor Severino Apolônio de Santana só sabe diferenciar o claro do escuro. Não se trata de uma perda de visão natural da idade. Quando aprendeu a andar e articulava as primeiras palavras, antes dos 2 anos, já tinha os olhos comprometidos. Ao longo da vida o problema foi se agravando. Não enxerga e ainda por cima sofre com dores permanentes, pois os cílios, invertidos, roçam a córnea, numa agressão sem fim. Esse morador de Chã Grande, Zona da Mata, a 82 quilômetros do Recife, é a prova viva das sequelas de uma doença esquecida, considerada erradicada nos anos 70 do século passado, mas ainda presente na população rural e urbana: o tracoma.
Severino foi descoberto na pesquisa iniciada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) há quatro meses, com apoio do Ministério da Saúde e do Estado. O Censo do Tracoma, de abrangência nacional, já visitou 11 municípios pernambucanos, com casos positivos em todos eles. A coordenadora do estudo e pesquisadora da Fiocruz no Recife, Giselle Campozana, explica que serão examinados moradores de outras 72 cidades até o final do trabalho. Os doentes estão sendo tratados. Além de Chã Grande, Aliança, na mesma região, está sob avaliação. No Grande Recife, o trabalho de campo já passou pela capital, Olinda, Cabo de Santo Agostinho, Itamaracá, São Lourenço da Mata, Moreno, Igarassu, Itapissuma e Araçoiaba.
“Na Ilha Joana Bezerra (Recife), de 607 moradores examinados, nove tinham tracoma, dos quais sete crianças com idade entre 1 e 9 anos”, adianta Giselle, a partir da apuração de dados parciais. O mal é uma conjuntivite de evolução crônica, causada pela bactéria Chlamydia trachomatis, com cinco formas clínicas: duas transmissíveis (tracoma inflamatório folicular e tracoma inflamatório intenso) e três não-transmissíveis (tracoma cicatricial, triquíase tracomatosa e opacificação corneana). A Organização Mundial de Saúde estabeleceu como meta para 2020 a erradicação de toda perda de visão em razão da doença. A Chlamydia foi introduzida provavelmente no Brasil no século 18, com as migrações europeias.
O agricultor Severino possivelmente sofreu repetidas infecções pela bactéria. O oftalmologista Marcos Matos, do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), examinou o paciente na semana passada, no Recife, e disse jamais ter visto um caso tão avançado de tracoma nos seus 16 anos de medicina. “Ele tem a parte externa do olho, a córnea, totalmente cicatrizada. Só tinha visto situação similar em livro”, afirmou o especialista. A sequela atinge os dois olhos e a recuperação da visão é incerta. Na ocasião da consulta, o médico tentou colocar lentes para diminuir a agressão dos cílios invertidos, mas a solução para esse problema será mesmo cirúrgica. A recuperação da visão exigiria um transplante de córnea e, mesmo assim, não é certo que funcione. “Pode haver alteração mais profunda no globo ocular”, explicou.
Para quem nunca teve acesso a diagnóstico e tratamento, medida que alivie o sofrimento já é um bom começo. “Estou disposto para o que Deus quiser”, afirmou Severino Santana, ao sair do encontro com o oftalmologista. Até que seja providenciada a cirurgia, ele fará uso diário de um lubrificante para diminuir o atrito dos cílios com a córnea.
Conforme Giselle Campozana, a doença atinge especialmente populações com baixa condição social, dificuldade de acesso a serviços de saúde e água tratada. Para o censo foram selecionadas áreas onde 50% dos domicílios são de famílias com renda domiciliar per capita de até um quarto de salário mínimo e mais de 5% das casas não têm ligação com a rede de água tratada. Durante o estudo, todas as famílias do território escolhido são visitadas. Mas apenas são examinadas aquelas que contam com crianças de 1 a 9 anos de idade, onde se concentra a maior incidência da forma inflamatória e transmissível do tracoma.
Do: JC Online.
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